A Imagem Impossível da Multidão

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Por: João Gomes, historiador e ativista do Conexões Em Luta

O acontecimento que não parou de se produzir desde 2013 – e eu me isento de datá-lo de modo mais preciso – e que ressoa entre nós até hoje oferece a rara ocasião de nos confrontarmos diretamente com a questão da experiência direta ou indireta da multidão e da massa. Esta ocasião se transformou para muitos em uma exigência do pensamento, do espírito e dos corpos, de sua indissociabilidade, para que pudéssemos de alguma forma, e segundo escolhas individuais e comuns, ser dignos desse acontecimento, como dizia Deleuze.

Esta experiência singular de um “acontecimento monstro”[1] exprime e é ao mesmo tempo mediada pela relação complexa que estabelecemos com o que vemos e com o que nos afeta por meio dos nossos órgãos sensoriais. No que toca a multidão, esta questão apresenta-se de modo ainda mais interessante, posto que as imagens “da” multidão são tão infinitamente diversas e diferentes quanto ela própria, e suas possibilidades de nos afetarem indistintamente são, ao contrário, reduzidas por uma aparente predisposição a concebermos muito monoliticamente a multidão através de uma chave de leitura/observação numérica. A obsessão pela quantidade de componentes de uma multidão e as disputas estéreis que se seguem devem nos alertar para uma compreensão fraca do que significa a regra da maioria e, consequentemente, para o que significa a própria democracia. E a questão numérica é atravessada pela noção de imagem.

É absolutamente necessário dissociar o vocábulo “multidão” da evidência numérica e do quantitativo, ao menos neste sentido e neste primeiro momento[2]. A multidão não é um número, nem mesmo um número impreciso ou uma estimativa. Dissociar, ainda, o vocábulo “multidão” da sua expressão óbvia de uma reunião física pura e simples – mesmo que nada haja de puro ou de simples – de corpos nos mais variados contextos, contrariamente ao que a Sociologia clássica estabeleceu, bem como algumas linhas da chamada crowd history. Lembro, por exemplo, que para Georges Rudé a multidão como um objeto viável de análise histórica só poderia compreender o “face a  face” ou o puro “contato direto” e não qualquer tipo de fenômeno coletivo, como uma nação, um clã, uma casta, um partido político, uma comunidade de vila, uma classe social, o “público” em geral – de um ponto de vista tardiano ou habermasiano – ou outra “coletividade ampla demais para se agregar”[3]. Este posicionamento foi já revisto e criticado, como o fez, por exemplo, Mark Harrison: “Multidões são, e por muito tempo foram, costumeiramente usadas para proclamar a existência de certas visões e valores. Quando milhares de pessoas se apresentam nas ruas, seus sistemas individuais de valores são reduzidos, condensados, filtrados e reinterpretados por aqueles que comentam sobre eles. Este processo (efetivamente, a extrapolitização dos ajuntamentos) pode ser conduzida por uma descrição das massas em termos individualistas. Isto é, entretanto, apenas uma parte de uma ampla e complicada linguagem para a descrição e a caracterização das multidões”[4].

Existem avanços evidentes na proposta de Rudé se a compararmos com as posições mais radicais da Sociologia fundada por Émile Durkheim e Marcel Mauss, para os quais a multidão, la foule, sendo uma forma de grupalidade de curta duração, e, portanto, não uma instituição, não poderia ser compreendida “exatamente nos quadros de nenhuma ciência”[5]. Em certa medida, também para Max Weber, a “situação de massa” não possibilitaria o estabelecimento ou a verificação de “relações de sentido” entre o comportamento de um indivíduo e o fato deste indivíduo fazer parte de uma massa, e dessa maneira não poderia haver, de acordo com o pensamento de Weber, uma “ação social” evidente, dada a inapreensível “fluidez” dos fenômenos de condicionamento e imitação – aqui, uma crítica direta a Gabriel Tarde – que representam, por fim, “casos-limite da ação social”. Dito simplesmente, entre a Sociologia clássica e a chamada crowd history oscilamos entre a conceitualização de instrumentos de análise do coletivo desencarnados para uma imediata apreensão dos meros corpos reunidos.

O vocábulo “multidão” é aquele que, desde que é evocado, dá conta não de uma realidade efetiva, mesmo que de complexidade social mínima, mas de uma impossibilidade discursiva de se nomear um indício potente de que algo outro pode existir no seio do social de profundamente indefinido e indiferenciado. A coletividade indefinida, base do termo multidão, é o limite do pensamento de um ponto de vista sociológico e antropológico que, no entanto, tenta constantemente dar conta dela, descrevê-la, mostrá-la. A multidão como coletividade indefinida não se fixa – eis sua inconstância e fluidez, percebida por Weber –, ela não institui nada obrigatoriamente nem é por nada instituída; transformá-la em instituição, eis aí também um dos riscos maiores. É extremamente relevante lembrarmos que, para Toni Negri, a alternativa teórica para o impasse sociológico sobre as instituições no qual se encontra a multidão é a de repensá-la a partir da ideia de poder constituinte. Segundo Negri, “a multidão é monstruosa porque ela é constituinte”.

A manifestação da coletividade indefinida na forma comum da multidão, o “isto” ao qual se dá o nome de “multidão” como sua manifestação, não nos garante uma maior visibilidade sobre ela e nem esta manifestação é a sua imagem por excelência ou sua imagem própria. Que a noção de manifestação tenha uma relação profunda com a noção de imagem e de figura não implica que ela, no caso específico do problema da multidão, seja desta última a apresentação física que poderia nos dar um ponto de partida ou um ponto de vista seguro para através dela alcançarmos uma melhor compreensão da natureza das multidões. De uma manifestação só se tem a própria manifestação e o que ela carrega. É um efeito de superfície. Não se vê através dela, e ela não pode ser, tampouco, uma representação.

Quando cada um de nós lança o olhar em direção àquilo que se chama multidão, estabelece-se um equilíbrio delicadíssimo entre a palavra que enuncia uma condição efetiva e a imagem que se constitui a partir da enunciação, pois é preciso entender que o que vemos não é neutro, e não há neutralidade no olhar em sua relação com o discurso que o precede ou que dele deriva e as noções que adquirimos ao longo do tempo para nos referirmos ao que vemos. Ao ver algo que nos evoca o termo multidão, nós consequentemente criamos a multidão que dizemos estar vendo. Essa é uma maneira de nos rendermos aos incontáveis olhares das pessoas para as quais indistintamente nós olhamos. Uma “imensa impotência comum”, como diria Maurice Blanchot, é a expressão talvez mais justa para todo o campo de possíveis dos devires multitudinários latentes na coletividade indefinida e que, na contramão de toda e qualquer abstração do poder do Um, expõe novamente cada homem a um outro. A complexidade em se fixar e se apresentar de modo definitivo uma imagem da multidão, imóvel ou móvel, como signo dessa impotência é ainda mais intensa. As tentativas feitas no sentido oposto foram tão variadas quanto inócuas. Todas as medias que conhecemos, dependentes ou independentes, ensaiaram nos últimos tempos movimentos de apreensão e de captura da multidão. Temos uma escala vasta que se espraia entre um eixo vertical e um eixo horizontal, que vai do chão da rua, do corpo a corpo, até os sobrevoos dos helicópteros. E todos os sujeitos implicados nos oferecem uma peça do que acreditam estar se produzindo no interior do acontecimento. Questão, portanto, de ponto de vista, de tomada de posição, de enquadramento, de perspectiva, de aproximação e de distanciamento. Questão estética e política.

Todas essas imagens técnicas, tão diferentes entre si, fracassam no seu intuito de dar visibilidade à multidão. Como resultado nefasto de tal fracasso, uma imagem é ainda assim produzida através de cada uma dessas escolhas fotográficas e cinematográficas; e cada uma delas se entende legítima e justa. Que seja. “É sempre o que acontece quando um cineasta filma uma multidão – nos lembra Georges Didi-Huberman: é preciso, como dizia Poudovkine, subir em um telhado para seguir os grandes movimentos, depois descer ao primeiro andar para melhor ler as bandeirinhas da manifestação, e enfim se misturar às gentes para seguir de dentro. Nós poderíamos sugerir – continua Didi-Huberman – que se exponha os povos apenas produzindo uma imagem dialética de uma dupla distância que põe em balanço – em ritmo – uma imanência e um corte, um movimento de imersão e uma operação de enquadramento. Não expõem-se os povos senão mostrando junto o povo que falta”.[6] A imagem da multidão não poderia ser, no limite, uma imagem; ela seria muito mais da ordem de uma vertigem, de uma queda, de uma oscilação contínua e incessante entre dois extremos topológicos pouco reconhecíveis. Um abismo do foco e do enquadramento cujas fronteiras se diluem, e o dentro e o fora se resolvem em uma exterioridade excedente e que retira do discurso imagético simples toda e qualquer potência política totalitária, sem cegá-la por completo, cegando talvez apenas uma determinada intenção do olhar. O desativamento do dentro e do fora da imagem corresponderia à impossibilidade de se falar em infiltrações externas no seio da multidão, em corpos que não se pode admitir em seu interior, em exclusões purificadoras etc. A multidão não possui um dentro e um fora, e, a cada vez que um corpo ou um conjunto de corpos tende a ser expulso dela, é ela própria que se exclui. Tal vertigem, impossível de acompanhar a olho nu e portanto não numérica, intensamente dinâmica, como deveriam ser as demandas e criações subjetivas multitudinárias, poderia ser um elemento em contraponto a qualquer tentação de recuperação dos métodos ditatoriais de ritmização das multidões e das massas empregados no início do século XX que ocasionalmente emergem muito discretamente em momentos decisivos para nossos governos e igrejas e nas montagens épicas de agloremarções humanas[7].

[1] P. NORA, “L’événement monstre”, Communications, 18 (1972); republicado com alterações com o título “Le retour de l’événement”, P. Nora et J. Le Goff (dir.), Faire de l’Histoire, t. 1, Paris, Gallimard, 1974, p. 210-227; Pierre Nora retornou recentemente ao tema em uma entrevista ao jornal Libération de 20 de janeiro de 2015, depois dos atentados do Charlie Hebdo e das manifestações massivas que se seguiram. Sobre a noção de “acontecimento monstro”, ver: F. DOSSE, “Événement-Monstre”, Renaissance de l’Événement. Un défi pour l’historien: entre sphinx et phénix, Paris, Puf, 2010, p. 241-259.

[2] Sobre outra via do número, ver: J.-L. NANCY, La Communauté Affrontée, Paris, Galilée, 2001, p. 28-30.

[3] G. RUDÉ, The Crowd in History 1730-1848, London, Lawrence and Wishart, 1981 (1964), p. 03.

[4] M. HARRISON, Crowds and History. Mass Phenomena in English Towns, 1790-1835, Cambridge, Cambridge University Press, 1988, p. 05. Ver também: E. P. THOMPSON, Customs in Common. London, Penguin Books, 1993 (1991).

[5] M. MAUSS e P. FAUCONNET, « Sociologie », La Grande Encyclopédie, Paris, vol. 30, 1901, p. 170 (Œuvres 3, Paris, Les Éditions du Minuit, 1969, p. 139-177).

[6] G. DIDI-HUBERMAN, Peuples Exposés, Peuples Figurants. L’œil de l’histoire, 4, Paris, Les Éditions du Minuit, 2012, p. 227-228. Toda esta passagem e a noção de “povo que falta” é diretamente inspirada por Gilles Deleuze, Cinema 1. L’Image-Mouvement.

[7] Ver: P. MICHON, Rythmes, Pouvoir, Mondialisation, Paris, PUF, 2005; IDEM, Les Rythmes du Politique. Démocratie et Capitalisme Mondialisé, Paris, Les Prairies Ordinaires, 2007.

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